Cidade oculta

No espaço febril das nossas cidades não há lugar para velhos e crianças

CORREIO DO ESTADO / DA REDAçãO


Gilberto Verardo - Psicólogo, psicanalista

Pessoas estão adoecendo por causa das cidades neurotizantes e as autoridades constituídas estão interpretando como causas pessoais. 

Jamais terão a sensatez de fazer um mea-culpa e admitir que as instituições que administram estão velhas e doentes, travando a vida e a liberdade das pessoas. 

Há um desperdício de receitas públicas para manter uma estrutura publica e uma polis adoecedora para a maioria e dar um paraíso para poucos. Um dos vários exemplos foi dado pela Prefeitura de Campo Grande com venda e tentativa de doação de áreas públicas para entes privados. Uma aberração. 

Os pobres contribuintes, doutrinados e condicionados pensam que a causa de suas doenças físicas ou mentais seria por uma questão genética, de má formação de algum órgão ou por ter burlado alguma recomendação médica. Esses são os indivíduos frequentadores de consultórios, farmácias e hospitais. 

Preferem deixar o destino da sua saúde nas mãos de outro. Na área mental, não é diferente. Aliás, é ela que alimenta as doenças do corpo, da mente e da alma. Uma forma maquiavélica de controlar destinos humanos.

No espaço febril das nossas cidades não há lugar para velhos e crianças. Nos asilos, nas escolas e nos parques policiados, quando há, é onde estão mais livres. 

Soma-se a isso um alto índice de violência, em que há pessoas transitando a pé, de carro, a passeio ou se deslocando para o trabalho ou mesmo a lazer. 

Além disso, a vida nas cidades contemporâneas se assemelham a um convento burocrático. Tudo é moroso e cansativo. Parece de fato incrível, no entanto fica cada vez mais difícil percebermos alguma semelhança entre nossa casa e nossa cidade. 

Parece que o lugar onde moramos se transformou em um bunker, que nos protege contra tudo e contra todos. É a cidade oculta.

De tempos em tempos, uma profissão se realça, em acordo com a dinâmica do sistema social. A pós-pandemia parece indicar certo crescimento das profissões da saúde mental e do comportamento. 

O quadro social global está indicando isso, apesar de a medicalização persistente oferecida para qualquer tipo de incômodo, alimentada por um decadente modelo de saúde sintomatológico e hospitalocentrico. 

Logo de início, é bom deixar claro que médicos, psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras, juízes, promotores ou urbanistas não podem curar as cidades. O processo eleitoral talvez. Antes, precisamos saber diferenciar pinóquios de sinceros. 

Mesmo assim, apenas melhoram a condição de sobrevivência das pessoas com um santo remédio: a esperança. Já para as cidades, o remédio só é oferecido de quatro em quatro anos, com o receituário eleitoral. Escolher mal um candidato é o mesmo que escolher um remédio errado.

A indução contagiante do marketing político não deixa muita margem para uma escolha sensata de renovação no poder político, pois há uma estranha forma de “sacrifício' da classe política em manterem-se no poder. Assim, o destino dos habitantes das cidades intolerantes é assimilar essa intolerância para não se sentir um peixe fora d’água, e o ciclo da neurose coletiva arrefece. E a saúde psíquica se compromete.

A saúde mental da população nunca foi fonte de preocupação na esfera governamental, nem antes nem pós-pandemia. Nas cidades onde vivemos, somos perseguidos pelo ruído excessivo, mesmo durante o sono. 

Falar de ar poluído e da escravidão do olhar para prédios de cimento virou lugar comum. Também relativo aos contatos humanos, é muito sofrido para o ser humano perceber que os interesses mútuos são muitas vezes encenados e artificiais. 

O jogo de interesses predomina. Estamos normalizando coisas adoecedoras do corpo e da mente e se adaptando às situações estressantes. 

Então, estamos medicalizando o individuo para preservar a estrutura social adoecedora. Para a esfera pública, melhor manter o status quo de uma estrutura social doente, desde que composta de indivíduos obedientes aos seus deveres cívicos e tributários. 

Pessoas que vivem neste tipo de modelo social são expropriadas de si mesmos e, caso não tenham estrutura psicológica resistentes, acabarão enfermas ou dementes de fato.

Dentro deste panorama real, porém ignorado e omitido nos conceitos e abordagens das políticas públicas, incluindo as de saúde mental, instala-se a dúvida questionadora. Quem estaria mais doente? 

Os cidadãos ou a estrutura social com suas instituições tradicionais perdendo a força da credibilidade de outrora? Chega de adoecer a população com um Estado burocratizado, lento no cumprimento de seus papéis públicos e muito dispendioso para o contribuinte.