Uma aula de História

Sufocada a rebelião pelas tropas de Vargas, o projeto emancipacionista teria de aguardar mais de meio século

CORREIO DO ESTADO / DA REDAçãO


Douglas elemar - Professor do Ensino Médio

Todos os dias minha avó lê o jornal. Não lê apenas uma vez, não. Ela passa a manhã inteira e parte da tarde lendo e relendo estas letrinhas, como quem busca a decifração de um insolúvel e precioso enigma. 

O detalhe é que minha avó tem 101 anos de idade. Em seu franzino corpo, ela carrega mais de um século de existência. E eu me pergunto: qual será a essência de tamanha longevidade?

Nascida em 1920, portanto, quase sessenta anos mais velha que o nosso querido Mato Grosso do Sul, na região do Barigui, sul do Estado, região de fronteira, ela é um patrimônio vivo da história sul-mato-grossense. 

E por que não dizê-lo, sem maiores veleidades, do Brasil? Creio que qualquer um que ultrapasse os 100 anos deveria ser considerado patrimônio da humanidade.

Quando pequena, assistiu ela as tropas da Coluna Prestes invadirem a terra onde morava com os seus e tomarem de assalto o bolicho da família. E relata com assombrosa exatidão: “Eles queriam um lugar para dormir, comer e, se não fossem atendidas suas exigências, disseram que ateariam fogo em tudo, mas minha mãe não deixou'.

Em 1932, contando apenas 12 anos, coevo à Revolta Constitucionalista, quase viu o sonho da emancipação do Estado se concretizar, uma vez que em troca do apoio à revolta paulista o sul ganharia seu próprio estado. Sufocada a rebelião pelas tropas de Vargas, o projeto emancipacionista teria de aguardar mais de meio século.

Cresceu, casou-se ainda moça e do matrimônio nasceram-lhe cinco rebentos. A vida não era fácil; não o é hoje, que dirá àquela época. 

Queria ela proporcionar aos filhos a educação que esperou obter e não teve; o marido, homem do campo, no entanto, não concordava em ir para a cidade. Teve então ela de escolher: optou pela vida citadina.

E lá se foi sozinha, qual ave a carregar debaixo das amplas asas maternas os cinco filhotes sequiosos pelo salutar alimento chamado escola. Mulher, separada, cidade do interior, que desafios minha avó não encontrou? Que preconceitos, calada e resignada, não sofreu? Só ela os sabe.

Aos 34 anos de idade, em 1954, ouviu pelo rádio a notícia do suicídio do presidente Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, cidade do Rio de Janeiro. 

Não imaginava ela que para lá migraria 15 anos depois, no ano de 1969, em plena ditadura militar. Fez da costura o seu sustento e testemunhou a eleição do seu querido Leonel Brizola para governador do estado do Rio de Janeiro, em 1983.

Todavia, ainda sentia no peito saudades da sua terra querida. Para cá voltou na década de 1990, morou em Amambai, e em 2007 reencontrou um antigo amor da adolescência. A vida é mesmo uma caixinha de surpresas.

Ambos octogenários, e para surpresa geral (minha, principalmente), casaram-se. Viveram felizes por 10 anos, primeiro em Ponta Porã, depois em Campo Grande. 

Mas quis o destino que o matrimônio findasse, entre outros motivos, quando se casa com alguém, “casa-se' também com os familiares, e alguns não entendem que, não importa a idade, o que o casal quer é ficar sozinho. No mais, como disse o poeta, foi infinito enquanto durou.

No mais, quando a vejo lendo e relendo o jornal, com os seus 101 anos de idade, tendo passado incólume à Covid-19, fico em dúvidas se, após a sua longa e brava jornada, ela é minha avó de verdade ou quem sabe uma aula de História, e de vida, encarnada.